Por toda a minha infância, não pensei jamais na morte e nem senti dela qualquer bafejar pela minha nuca. Nem dela tive notícia, se apartando de mim e chegando ao passamento tão somente aqueles que me eram distantes ou já velhos o suficiente para ter da morte a naturalidade de quem cumpre uma obrigação, conforme nos é obrigado, quando pequenos, a aprendizagem da leitura e raciocício matemático. E mesmo que me entristecesse diante da morte de alguns destes velhos, não chegava a ter da morte a sua presença, rasteira, nem sequer dela fazia qualquer reflexão, apesar de, é bem certo, me entreter naqueles tempos a raciocinar sobre assuntos extravagantes para uma criança.
Como o tempo que me separa daquela época é bem razoável, posso mesmo estar a subjugar, por esquecimento, aquelas minhas reflexões pueris, que bem podem ter abarcado a morte e assuntos relacionados ao mundo oculto - o qual, à época, também não me parecia existir, mas me dava o medo necessário para que dele eu não fizesse qualquer julgamento, o que ainda hoje permanece em idêntica situação. Por volta dos meus seis anos, um incidente forneceu-me a primeira, bem imagino, sensação da fragilidade da vida: um assassinato de um comerciante, cujo rosto ainda guardo e a qual me tratava com muita atenção, vendendo-me naqueles tempos umas tatuagens removíveis de personagens da Marvel e Hanna-Barbera. Tratava-se de um dono de bar e por vingança ou motivo fútil, conforme sempre se dá, foi baleado sucessivas vezes numa noite de semana. Naquele mesmo dia, durante a tarde, estive eu naquele bar para comprar qualquer coisa que me foje à memória. Minha própria mãe esteve naquele bar, poucos minutos antes do crime, para comprar um maço de cigarros.
É bem provável que eu tenha feito, por ocasião deste crime, os quais ouvi os disparos, uma vez que o tal bar ficava a menos de trinta metros de minha casa, toda sorte de reflexão sobre esta coisa de morrer. Mas jamais, naqueles tempos, a minha própria morte serviu-me de tema.
Não sei ao certo a primeira vez que me vi apavorado diante da morte. E melhor escrevo: não sei ao certo a primeira vez que me vi apavorado diante um pensamento que trouxesse o hálito amargo da morte. Assim, melhor explico, uma vez que não tive, nestes mais de doze mil dias, daquelas sensações que devem nos atingir diante de um acidente de carro ou doença grave. Creio que por volta dos vinte anos, e desde lá tem sido assim, não há dia que a morte não me diga algo como "estou aqui, não se esqueça que eu posso a qualquer hora lhe abraçar, tal qual a sua esposa o faz, pela manhã, ao se despedir". Não houve dia, tenho certeza disso, que esta sensação de que posso bem deixar de viver a qualquer segundo, por motivo dos mais diversos, não tenha se ajustado ao meu pensamento.
Ora, brava neurose a minha. Brava. E estar a conviver com ela, sem que eu tenha tomado qualquer providência, faz-me tão covarde quanto à passividade que assumo por conviver com um dente quebrado, o qual fere-me a bochecha direita há sei lá quantos anos. Não sei o que me dá, por desta sensação não me enraivecer, querendo dela distância, não obstante o incômodo que me provoca. Da mesma forma, que me dá tal sensação ruim? Não estivesse eu ainda tomado de uma certeza, estaria eu ainda mais perplexo: quanto mais me é uma hora feliz, mais esta sensação funérea me abraça. Nos momentos de edílio - aqueles de gozo pleno e felicidade apaixonada, a tal sensação vem me tirar parte daquilo que eu deveria provar tão somente com alegria. E vem sem que eu me dê conta ou a chame ou a deseje. Vem, simplesmente, proporcional ao tamanho de minha festa.
Esta mesma sensação, e a esta altura algum leitor poderá ter se identificado com a minha inquietude, por sofrer dos mesmos achaques, motivou-me a escrever muitos de meus poemas primevos. A morte tinha sua presença certa, como topus lírico obrigatório ao meu universo literário. Deste tema tentei me remover, buscando mais frescor, por diversas vezes, mas por diversas vezes fui por ele novamente atingido. E, nunca soube o porquê, mais eu me afasto, mais sinto que dela tenho medo - e muito do que escrevi parece dar sintoma de cada dia desta evolução.
Tem sido assim, há muitos anos. E disto eu faria alusão alguma ao mundo, sob pena de ser considerado um demente ou algum sofredor de síndrome, da qual eu não sofra, apesar de - a olhos clínicos, parecer realmente ser tomado, dos cabelos aos ossos. No entanto, há pouco tempo, tal sensação tem me roubado inclusive o gosto pela frivolidade, coisa da qual sempre gostei, no entretenimento de meus dias. Tenho me mostrado tacirturno, de seriedade de me doer o queixo, de semblante a fazer inveja a Werther, aquele personagem triste de Goethe. Tenho estado sempre numa confusão de não querer confusão: e como vai a mocidade não querer confusão, arriscando-se mais aos fortuitos acasos e às emoções? Arre, de tudo o que pode minar uma vida, nada mais é danoso que a extrema seriedade, que tudo vê com pavor de querer e tocar!
A presença da morte pode, neste paradoxo exemplar, nos obrigar ao Carpe diem et nocte, nos desesperando a ponto de nos motivar a andar, a correr pelos caminhos que se abrem diante de nossos olhos. No entanto, este mesmo sufoco nos dá o motivo, mas nos tira a força e a criatividade, tal qual uma paixão ardente que nos motiva a escrever uma longa carta apaixonada, mas nos dá tanto pavor e insegurança que a tal carta jamais chegará à metade da folha, onde depositaríamos palavras justas e sinceras.
Ai, ó grande Byron, vantagem a nossa, de ao menos desimportar-se com o mundo, escrevendo aquilo que nos perturba - tentando não mais fomentar na quietude de nossa solidão aquilo que muitas vezes é tão comum e vulgar que mesmo aos mais nobres ou miseráveis deverá atingir. Pudera, contudo, depois de ter escrito o que se está escrito, sentir esvair-se do peito o nó tão bem apertado. Pudera nos apaziguarmos a cada verso escrito e cuja finalidade não chega a ser o elogio das musas ou o alcance da glória, mas tão somente um canhestro desabafo.
O que me resta, nesta minha ignorância que nunca finda, é supor que eu não difiro dos demais. Que sofro em verdade dos mesmos importúnios que a todos, ricos ou pobres, mesquinhos ou caridosos, pacatos ou pervertidos, experimentam quando, por acaso, amam a própria vida, sabendo que nela, afinal, se goza e se jubila mesmo nas horas mais incertas. E que, eu, este frágil e sobejamente angustiado sujeito, estou mesmo a dar importância extrema a uma ânsia que não merece atenção.
Ou estarei eu dando de ombros a algo que merece minha mais sincera preocupação? Tais questões, deveras, irritam-me.