Meu avô paterno, infelizmente, não me viu vivo. Meu pai era o seu caçula de dez irmãos. E eu, o primogênito de meu pai. E bem provavelmente meu avô não me daria lá grande atenção, ao seu décimo sexto neto. Meu avô paterno, Osório, esteve de ouvidos na final da Copa de Mundo de futebol, em 1950. Isto eu presumo. Tinha por volta de 46 anos. Também esteve a comentar a vitória de Washington Luís – ou talvez até tenha lhe dado um dos 688.528 votos que elegeram o presidente.
Isto eu presumo. Não sei se afinal esteve a par das coisas.
O avô de meu avô esteve antes. Gabriel o seu nome. Viveu também em fazendas pelo sul do Estado do Rio de Janeiro e foi mais novo um pouco que o imperador. Talvez o tivesse visto alguma vez, falado. Ou talvez nem isso. Embora seja certo que fora afetado por algumas de suas decisões.
Isto eu não presumo, creio.
O avô do avô do meu avô já nem garanto ser qualquer coisa. Embora imagine que seja também homem do campo, não sei se neste ou outro continente. O avô do avô do meu avô podia ainda estar por lá, pela Europa. Viu a virada para o século XIX e pode até mesmo ter ouvido dizer da morte de um tal Tiradentes ou ter temido de fato o tal Napoleão.
O avô do avô do avô do meu avô poderia até ser muçulmano. Ou árabe ateu ou espanhol do norte. Deste sujeito eu nada sei. Dele tenho alguns fragmentos genéticos e só.
Ou de repente tenho dele mais que um pouco.
Sei apenas que ele existiu. Sim, ele existiu naqueles seus anos de juventude. Calhou de ter amado. Fodeu e teve um filho. E basta que tenha fornicado uma única vez!, mas a coisa mais certa que eu posso lhe dizer, paciente leitor, é que eu tive este avô (o qual chamo de "avô4") e ele foi capaz de foder ao menos uma vez durante a sua vida.
Novo ou velho, doente ou no auge do vigor, esteve lá. Adentrou uma mulher – e muito provavelmente sua esposa... Ou estarei presumindo demais?
Meu avô4 bem poderia ter sido mascate marroquino ou jardineiro da Maria Antonieta. Já tanto faz. Mas teve o corpo bom de uma mulher e lhe fez um filho, naquela metade do século XIX. E mesmo que eu me esforce, não consigo enxergar tão longe, forçando a imaginação a crer que todos foram homens medianos ou pacatos homens do campo.
Este mesmo avô poderia ser dos mais arredios, um cigano atrevido e parrudo? E provavelmente não era do tipo afeminado. E se o era, agradeço por ter se permitido as graças de uma mulher, nalguma noite pelo menos.
Ou o leitor me virá a dizer que a coisa é uma rede de gente e que não fosse o mascate marroquino, qualquer outro poderia lhe ocupar o espaço? Sim, quase. Mas mascate ou não, existiu este homem nesta linha de pais e filhos.
E adiante?
Meu avô9 bem deve ter sabido das descobertas do Novo Mundo e até quem sabe o sujeito não ficou certa vez, estupefato, olhando para alguma nave que partia ou chegava, de algum porto.
Meu avô40 pode bem ter sossobrado nas áreas do império romano. Pode ter tido a mulher estuprada por um soldado romano. Ou até era o soldado romano. Ou aquele que cuidava da mulher do soldado romano quando as tropas estavam longe.
Há dois mil anos – esteve lá. Talvez até estivesse no Egito ou na Pérsia, como me seria divertido saber! Meu avô40 pode ter jogado lama na cruz, ter vibrado com os maravilhosos leões na arena ou ter se lascado bem com o incêndio nos tempos de Nero. Esteve vivo neste tempos e seu esperma foi adiante onde deveria.
Nasceu também meu querido avô63, quando rolava uma guerra barulhenta em Troia. Faz tempo, uns 3200 anos. Mas é bem provável que ele não esteve por lá. Nenéns nasciam noutros cantos. Ou como supomos pela bela cena de Ulisses e Andrômaca, nenéns sobreviviam noutros cantos.
Quem não souber de Andrômaca, basta acreditar que sobreviver por esta época já não era coisa tão simples. Estamos no final da Idade do Bronze. Uma história imensa que olhamos de trás para a frente. O tempo nos permite apenas rever o acontecido, rever num videotape enorme que vai apenas de rewind.
Meu avô63 me é fantástico, inacreditável, por ser exatamente igual a nós, homens atuais, em praticamente todos os aspectos. Nem talvez mais barbudo. Ele talvez nem tenha aprendido a ler. Nem havia escrita, nem havia o que se ler. Naqueles tempos nasceram os primeiros sinais de qualquer bobagem. Alguns inventavam mesmo.
Este meu avô talvez tenha sido o sujeito que sugeriu a letra A.
Nem faz tanto tempo assim. Se a meu avô1.000 já não bastasse a dureza da vida, a guerra voraz que há entre gente, havia ainda uns outros macacos bem inteligentes pelos arredores. Há 50 mil anos havia gente tendo filho. E havia Neandertais e Floresiensis andando por aí.
Mas difícil mesmo foi para meu avô1500, este que passou apuros. Houve umas erupções bravas e um tal de inverno nuclear tornou o planeta bem desagradável. Cerca de dois mil humanos apenas sobreviveram. Hoje, dois mil não enchem nem o trem em São Paulo.
Há uns 75 mil anos os humanos curtiram uma fase bem difícil. Meu avô1.500 entre eles. Ou eu não estaria aqui.
Tem mais?
Tem, sempre.
Cada filho do mundo teve um pai e isto sempre ocorreu – uma evidencia das mais constrangedoras. E jamais houve um pai que não se parecesse bastante com seu filho.
Não houve filho que não fosse a fuça do pai.
E se meu avô20.000 não se parece muito comigo e nem é mais humano, foi porque estas diferenças se fizeram de geração a geração... Mas o sujeito era até bem esperto. Controlava o fogo inclusive. Meio lerdo, mas ainda tão parecido a gente toda que lê este texto, de olhos impiedosamente humanos. Tão parecidos que se encontrássemos um destes homo erectus passando na rua, não sairíamos muito assustados. Um milhão de anos voa?
Meu avô100.000 já era mais diferente mesmo, não nego. Embora um bebê deste meu avô não fosse muito diferente do bebê deste seu neto. Há cinco milhões de anos, meu avo cem mil reproduziu-se na África.
Antes disso? Claro. O pai do pai do pai do pai do... etc... deste meu ancestral, meu avô uma mistura de sagui com Mickey Mouse, vivia naquela linda e bucólica vida de bicho. Um bicho de fazer inveja ao Ligeirinho, aliás. Este é meu avô1.000.000? Esta medida já me parece estapafúrdia. O critério para este cálculo é puramente baseado na ideia de que, em média, avôs são avôs aos cinquenta. Conta que não me preocupei em reajustar, no adentrar ao passado, para fazer jus a médias diferentes das atuais. E, para Australopitecos, 25 anos de vida para se reproduzir era coisa impossível. Vivia-se bem pouco, estes nossos avós. Sim, nossos. Qualquer um de meus queridos leitores também teve este avô, há 50 milhões de anos!
Há 100 milhões, há 500 milhões! Tive avô que foi peixe! Tive e desde de que a vida surgiu aqui neste lugar – há bilhões de anos.
Até o distante encontro com o pai primeiro – esta fagulha que nos acende – este composto que chamamos também de vida.
Este planeta é um lugar agradável, afinal.
Minhas mães também. A mãe de minha mãe de minha mãe, de minha mãe... Pudêssemos ter também a visão futura... a filha de minha filha de minha filha... seguindo numa cadeia antiga que teve minha esposa como um destes elos que seguem adiante. Terei um neto que já nem se parecerá comigo... Um neto1.000.000 que somente existirá porque é parte de uma rede bastante produtiva.
Um início.
Qualquer pombo que hoje vive teve um pai, avôs contínuos... tudo o que está vivo agora teve seus elos na linha. Contanto que se faça filhos, qualquer pombo segue adiante. Daqui a quinhentos milhões de anos que serão os pombos!?
(Escritório, 04h10min. 13ºC)