sexta-feira, março 29, 2024



Escrever peças de teatro é uma insanidade. 

Há muitas insanidades na vida humana, das mais diversas. Mas se meter a escrever peças de teatro é especialmente uma atividade despropositada.


Primeiro, um texto para teatro só existe para ser montado, num palco, com ator e plateia. Sem isso, uma peça de teatro é um fantasma vagando sem corpo.


Poemas poderão ser lidos a qualquer tempo. Declamados.

Contos, claro. Romances, certamente.


Mas peça de teatro quem lê é ator curioso e produtor em busca do que montar. 


E se eventualmente montada, com ator e plateia, estaremos sempre nas mãos da interpretação do senhor diretor, nas mãos do talento do ator e no empenho do senhor produtor.


Num país em que o povo tem medo de teatro — que quando dá pra ser enfadonho é um pesadelo, muitas vezes traumatizando o espectador por toda a vida. 


Num país em que os artistas intelectuais descolados estão sempre fissurados por autor inglês, alemão, russo, ui, traduções de mundos distantes.


Num país em que cada centavo conta. Como arriscar nome e dinheiro numa peça de um escritor desaforado?


Dito isto, escrever peças de teatro é uma insanidade.


quinta-feira, março 28, 2024

Sobre imagens feitas por Inteligência Artificial.


I

Graças às novas tecnologias, teremos retratos mais decentes para nos lembrarmos de nós mesmos no futuro distante. Fotografias em que não estaremos cheios de cravos e pelos escapando do nariz, barba por fazer, mal vestidos e despenteados. 

E não haverá isso de fotografia sem foco, enquadramento esquisito, nem haverá iluminação precária e fundo feio de imagem.

Basta alguma relativa paciência. E teremos até como arranjar umas fotos que não puderam ser feitas no passado, com pessoas que nunca conhecemos, com vestimentas que nunca teremos.

Podemos todos aparecer bem vestidos, garbosos, elegantes. 

Meio mentira por ser obra de computação.
Mais mentira ainda por não retratar a precariedade cotidiana de cada um.

Mas democratizando ao menos a fina estampa para os nossos retratos.

II

Não tenho um terno que me caia bem assim.
E aqueles que ainda tenho estão desalinhados, velhos.

Não tenho uma calça assim nova.
As calças que tenho já caminham sozinhas pela casa.

Minha barba está sempre por fazer. 
Faço logo cedo e de noite já pareço um fugitivo de manicômio.

Não tenho fotógrafo profissional, sabedor dos ajustes.
Com câmera EOS 6D. Com iluminador e maquiador.

E muito menos tenho a paciência do modelo fotográfico.
Estou sempre diante do pigarro, do espirro, da coceira na orelha.

Ainda assim, sou eu nestas imagens. Ou não.
Eu olho e me reconheço. Mesmo sabendo que não sou eu.

É o exato inverso do que sentimos quando nos vemos numa foto antiga, real, em que estamos de boca torta ou vesgos ou mal iluminados.

A gente se vê, sabe que é a gente mesmo, mas não se reconhece.

E, de alguma forma, mesmo que nos pareça estranho, em breve já não nos importará tanto se a foto foi um registro real ou criado. 

Bastará que a gente se reconheça. Que os outros nos reconheçam.

Que a imagem feita por IA — em toda a sua recriação — pode nos apresentar de forma mais honesta, iluminada e sincera que as fotos efetivamente reais, geralmente mal feitas, improvisadas e amadoras e que deturpam, ainda mais, aquilo que a luz pode registrar.





terça-feira, março 26, 2024

Meu Cortiço

 


Lá pelo comecinho de 2009, David Rock, produtor e diretor, me ligou e fez um pedido: queria uma nova adaptação, para teatro, de “O Cortiço”, um romance cheio de gente e lugares e palavras.

Gostei do desafio, matutei, e escrevi a minha visão para a obra de Aluísio Azevedo. A obra ganhou Prêmio Estímulo Proac/SP,  foi montada, brilhantemente, e permaneceu em cartaz. 

Com apenas dezesseis personagens e recursos audiovisuais, pensados para a economia de recursos materiais, “O Cortiço de Aluísio Azevedo” traz um bom equilíbrio entre todos os personagens, em cenas ágeis, e é também uma boa sugestão para grupo de atores iniciantes.

E todo brasileiro gosta de “O Cortiço”. Poucas obras literárias conseguem ser tão essencialmente brasileiras e atemporais, em seus conflitos e personagens. Reescrevê-la foi um exercício natural e saboroso, como se eu estivesse a tratar de personagens que conheci por aqui, na minha cidade, no meu tempo.