terça-feira, novembro 16, 2021

A canção espiral que vai ao infinito

 "Sono semplicemente un pagliaccio che perde tutta la sua grazia quando pensa alla disgrazia di perdere sua moglie."

"Trapezista" talvez seja minha mais bela canção. Talvez. Isso depende de quem ouve, como ouve e dos vínculos emocionais que encontrar com a obra. E depende também se é frio ou chuva, setembro ou feriado. Eu, daqui do meu canto, tenho vínculo emocional com todas as canções que fiz, naturalmente. Todas as minhas músicas me são misses de um desfile em que a menos bela ainda é uma deusa de pele macia. Mas vez outra me bate um "talvez quem sabe" a me dizer da importância de "Trapezista".

É a mais difícil de cantar, isso é certo. Ou me atinje em alguma fraqueza pessoal específica - apenas saberei quando ouvir outros cantores a saborearem os três versos que se desenrolam, no vai e vem da melodia. Tem uma melodia difícil, uma mudança de tom no "Sou trapezista" que complica sua execução. As pausas para a respiração precisam ser exatas.

Ah, minhas melodias, todas elas um pouquinho complexas. E pra música atual complexidade não é coisa que vai bem. Talvez há cinquenta anos, uma dose de complexidade fosse vista como coisa de bom artista, que vai além no seu processo de criação.

Por um tempo, simplicidade em demasia era até uma grande sina de fraqueza. Agora, em tempos de Tik Tok e canções de quinze segundos que se repetem tanto, melodia complexa é a sina de fracasso.

Paciência. O mundo futuro talvez há de perceber o que é "Trapezista". Ou talvez os humanos do passado o percebam enquanto ainda tiverem ouvidos. E logo também os italianos: gravarei versão em italiano de Trapezista. "Sono un diavolo ispirato" me parece uma ideia verdadeiramente boa.

Ah minhas melodias. nelas eu me vejo a delirar.

Aniversário de quem é infinito

Quando é meu aniversário comemoro o ano que vivi, a sobrevivência. Sobreviver a estes tempos, neste canto do mundo, é motivo pra comemorar reunido a todos, com bolo e champanha. É pra chorar até, abraçar a cada amigo, o cachorro no quintal, o chefe no trabalho, o motorista do ônibus. É pra fazer promessa e agradecer a cada deus já imaginado neste mundo de tantas crenças.

Quando é meu aniversário a família se reúne. Minha mãe rememora as dores do parto, minha esposa sente a viuvez ainda longe, minha filha me aperta as mãos, celebramos todos que eu permaneci por aqui, mesmo tendo trilhado meus quilômetros por entre um campo minado cercado de abismos. Ufa! Na roleta russa das coisas que destroem o frágil corpo, sobrevivi.

Ê!!! É a festa que se faz. Me dou presente até, compro na prestação, mas me dou essa chance.

Mas eu mesmo me agarro ao tempo que se esvai. Sobrevivi, emoções eu vivi, mas na numeração sobre o bolo, sempre me sobra um vento a dizer: um a menos. Eu fiz certa vez oito anos. Fiz certa vez vinte e nove. Fiz este ano quarenta e sete. A cada ciclo que o planeta faz no seu bambolê, eu me escorro na ampulheta, vou olhando a areia descendo, os grãos que vazam uns sobre os outros.

É... O cachorro no quintal me cheira, o chefe no trabalho me bate nos ombros, o motorista do ônibus cerra os olhos, cada um sabendo da finitude, sem até pensar nela. O bolo doce até, tão doce, perde um pouco do seu gosto. A champanha gelada perde suas bolhas, evaporam. A cada palma do "Parabéns a você" a vida - esta tão incrível experiência - se mostra apenas um bailado naquele mesmo campo minado... uma dança de horrores e delícias.

Mas quando é aniversário do Mengão, este eterno, temos todos outros pensamentos. O Mengo, na sua meninice, não correu risco de ser atropelado, não correu risco de engasgar na feijoada, não correu risco de levar bala perdida nos descaminhos. Seu aniversário não carrega deste drama. Assim como o Sol, o planeta rodou e ele apenas seguiu com a sua mania de brilhar jogando flama por todo os cantos.

Mais fácil acabar o Brasil (país que parece escolher a eutanásia a cada ano), que acabar o Flamengo. O Flamengo persistiria, até sem cidade, estado ou país, a disputar os campeonatos que os homens do futuro vierem a inventar para que o Flamengo se alimente.

E nem há ampulheta, nem tic tac a espreitar a finitude desse imenso monstro. Flamengo faz 126 anos e fará 252, seiscentos, fará mil, e parece dar de ombros a tudo isso. E não fará cinco mil anos apenas se não houver planeta onde se jogar futebol, o que não deixa de ser uma hipótese, tendo-se em vista que os cometas ainda estão por aí.

E esta é a bela celebração no aniversário daquilo que nunca finda. É a celebração de quem não está descendo a ladeira da vida. E é a celebração de quem está fora da linha mesquinha do espaço/tempo: somos só nós que comemoramos, afinal, nossa sorte. Celebramos ter passado mais uma temporada ao seu lado, aos seus pés. Pois se o Mengo persiste, nós é que sumimos do mapa. 

Se não estive aqui pra ver a glória de Zizinho, a simpatia de Leônidas e a categoria de Dida, não estarei também pra ver a quinquagésima taça libertadores, o centésimo campeonato brasileiro, o milésimo cariocão. Nisso também me pego a pensar. Apenas nisso: sobreviver o quanto puder, para a cada ano celebrar neste 15 de novembro e afinal dizer: "estou aqui, Flamengo. Ainda estou por aqui!".

Crônica publicada em 16 de novembro, na página mundorubronegro.com

domingo, novembro 14, 2021

Uma canção que virou tabu


"Enterro a 2" foi feita em 13 de novembro de 1991 - e ontem, portanto, 13 de novembro de 2021, comemorou também 30 anos. Ainda me lembro quando dias depois a mostrei a um grupo de colegas que estavam comigo diante da lanchonete da escola. Como minha memória tem lá suas estranhezas, me lembro disso. Daqueles que estavam lá, ao meu redor, não creio que alguém se lembre. 

Poderia citar ao menos dois dos colegas que estavam lá - mas de repente me pego perguntando se esta memória não tenha sido modificada ou distorcida na mistura de lembranças que temos, mudando personagens e ambientes na tentativa que o cérebro faz pra completar dados faltantes.

Pra mim, "Enterro a 2" era um poema tão romântico, uma canção de verdadeira paixão. Ora, estava eu nesta, entregue a uma paixão que só me deu azia e boas canções, estava assim a flutuar pelos sentimentos e queria, da minha maneira escorpiana, dizer daquela minha vontade de ficar perto, deitar junto, "morrer" junto.

Era tão óbvio aos meus ouvidos e olhos de escritor e compositor. Eu estava tão feliz por aquilo tudo, afinal "Enterro a 2" me era aparentemente tão original, uma declaração que extrapolava!

Mas a  reação de uma das minhas colegas de escola foi um "ai que horror!" e eu gargalhei. Outro, um garoto mais grosseiro, bastante aliás, me perguntou se eu estava "sentado na privada" quando escrevi aquilo. Sim, teve quem me dissesse coisa mais positiva, mas fiquei com a certeza de que aqueles adolescentes não estavam preparados para canção de imagens tão fúnebres.

A canção viveu todo este tempo nos meus arquivos. Eventualmente, eu a tocava, como se voltasse a colocar os dedos num tabu proibido e que vozes ao meu redor voltariam a gritar "ai que horror!", me olhando como se eu fosse uma bruxa a ser queimada em fogueira. Agora, 30 anos depois, não sei mais se me viriam com isso. Já ouvimos tanto disso, tanto a arte já se virou além dos seus limites, tantas imagens da vida real nos causaram asco, já passamos por pandemia, sobrevivemos e enterramos tantos amigos e tantos sentimentos. 

Eu não sei como "Enterro a 2" está sendo sentida pelos ouvidos e olhos alheios. A mim, ainda me é um grito de amor, pueril até, que usa de uma metáfora nada apaixonante justamente para colocar a paixão além do seu limite corpóreo, além da luz que cerca a própria vida.

Ah! meu cadáver preferido
Imagine a poesia
De sermos enterrados juntos
Na mesma cova
Nossos corpos colados
Eternamente
Apodrecendo
Ao mesmo tempo

Ah! nossos ossos se unindo
Revelando calmamente
Que os mesmos vermes
Que lhe comeriam
Se fartariam também
Da minha carne
Num banquete sexy
Com o nosso gosto

Ah! nosso cheiro putrefato
Nossa nudez crua e lenta
Fazendo inveja aos outros mortos
Que solitários
Morrem amargos
Sem o romantismo
Da podridão, do escuro e da morte