Depois de ter feito minhas primeiras canções, me dei o desafio de fazer uma música "romântica". Ora, eu havia aprendido violão com as canções de Roberto! Eu ainda era um moço virgem de quinze anos e de alguma "inocência", mas já tivera inúmeras paixóes platônicas não correspondidas, pequenas obsessões imaturas, e já entendia bem desta coisa de tristeza e rejeição.
Mas uma canção romântica não é sobre isso, o lado triste e desesperado do amor: é sobretudo sobre a celebração dos sentimentos, desta experimentação que nos faz sentir vivos e miseráveis.
Um tempo antes, em meados de 1989, eu havia concebido um romance de suspense chamado "Amnésia" a qual não escrevi ainda, décadas depois, embora o projeto ainda esteja "em aberto". O termo "amnésia" vagava há algum tempo pelas minhas ideias e me fascinava (isso de se esquecer de tudo, de ser levado a reinterpretar tudo o que há ao seu redor).
Depois de ter me decido a escrever uma canção romântica, eu passei alguns dias matutando no que me caberia dizer, que não fora dito, ou que não fora dito de uma forma um tanto específica.
Vale dizer, como já disse noutro momento, que todas as minhas músicas foram estimuladas a partir de situações concretas. Qualquer canção minha foi feita "para" ou "por" alguém, por sensações que foram vivenciadas e me inspiraram. Em geral, não é o que ocorre com os compositores todos, visto que estão sempre obdecendo a contratos, a parcerias ou necessidades apresentadas por produtores. Eu, na solidão de tudo, só tinha mesmo meu coração para atender.
Assim, absorto em como desenvolver esta primeira canção romântica, vi de repente um certo rosto que me olhava. Uma moça que chegava a ser assustadora de tão bela. Ela me olhava com seus olhos escuros e desnecessariamente brilhantes. Um olhar de três segundos.
Aquilo me foi o suficiente. Escrevi "Amnésia" naquele dia e naquele instante sabia ter feito uma canção muito boa, verdadeiramente boa. Guardei a canção comigo, ela explodiu no meu hit parade mental e fiquei atônito, querendo mostrar a todo mundo - ora, quem é que não se entusiasma ao fazer uma canção?
Na mesma semana, nesse entusiasmo justificado, mostrei o manuscrito com a letra e acordes a uma moça, com quem andava a flertar, pois me parecia galanteio certo mostrar manuscrito de canção original a uma jovem. Outra moça, aliás, que aquelas dos olhos escuros só mesmo me olhou daquela vez, por intuição de inspirar um poeta quando este estivesse de necessidade. A outra, que nem olhos tão escuros tinha, pegou a minha folha de papel e disse que queria levar consigo, para copiar e despareceu no turbilhão de alunos, que a aula começaria.
Ah, me senti um Lord Byron, um Olavo Bilac. Mas foi tudo ilusão. A moça me confessou, horas depois, que havia perdido aquele manuscrito, que sumira, desaparecera. Ora, eu nem havia feito cópias e um bloqueio me veio. Fui tocado por uma amnésia! Esqueci de tudo o que escrevera. Esta moça aliás, por outros motivos, evidentemente, se mudou de escola no mesmo mês. Só me deixou o desaforo.
Somente um ano depois, no mesmo em dia que compus "Se tu fosses minha", eu me apliquei a reescrever a música perdida. O entusiasmo com a música se fora, eu estava compondo loucamente, e "Amnésia" se transformou num arquivo apenas. Ou mais que isso.
Se tornou um dos meus mais vorazes fantasmas. Todas as vezes, todas!, que estive a olhar para um belo rosto com olhos a brilhar logo me vinha aquela mesma sensação descrita na música, era como se vozes quase inaudíveis me cantassem "quero esta imagem para sempre, doce e viva"... Era o fantasma de uma canção, um dos tantos, que a todo instante me suplicava, implorava por um corpo.
"Amnésia" foi talvez o fantasma mais barulhento e persistente que habitou minha cabeça, neste longos anos. Um fantasma, afinal, doce e vivo.