sexta-feira, novembro 12, 2021

Trovador, poeta ou o que seja

Insisto: não sou sou um músico, mas um poeta que faz música. Músico é uma espécie diferente de humano, ouvidos e raciocínio além de uma matemática hormonal. Músicos vivem embebidos de uma lógica que eu apenas vejo por frestas de uma parede tomada de rachaduras. 

Sou um sujeito de pensamento caótico, lúdico ou cínico, um trovador de vozes que ouço nos silêncios. Isso. Meus espelhos sempre me mostraram o que sou. 

Muito menos ainda sou instrumentista.
Daqueles que tocam Pixinguinha enquanto mascam chicletes.

Não. Minhas mãos me desobedecem, meus dedos me traem, e, pra mim, cada lá com sétima e sexta é um sofrimento árduo de conexão entre cérebro e tendão.

Ora, cantar eu canto. Canto "Put your head on my shoulders" ou "Sixteen Candles" e canto com alguma desenvoltura, a mascar chicletes. 

Mas pardais também cantam em suas gaiolas.
Isso não faz de mim um músico de ouvido perfeito e metrônomo encalacrado nas entranhas.

Só faz de mim um poeta de garganta umedecida, um pardal que canta em sua gaiola, por precisão de sua natureza.



quinta-feira, novembro 11, 2021

A amnésia e o fantasma nunca esquecido

"Não quero nunca me esquecer do seu rosto, 

quero esta imagem para sempre, 

doce e viva na minha memória"


Depois de ter feito minhas primeiras canções, me dei o desafio de fazer uma música "romântica". Ora, eu havia aprendido violão com as canções de Roberto! Eu ainda era um moço virgem de quinze anos e de alguma "inocência", mas já tivera inúmeras paixóes platônicas não correspondidas, pequenas obsessões imaturas, e já entendia bem desta coisa de tristeza e rejeição.

Mas uma canção romântica não é sobre isso, o lado triste e desesperado do amor: é sobretudo sobre a celebração dos sentimentos, desta experimentação que nos faz sentir vivos e miseráveis. 

Um tempo antes, em meados de 1989, eu havia concebido um romance de suspense chamado "Amnésia" a qual não escrevi ainda, décadas depois, embora o projeto ainda esteja "em aberto". O termo "amnésia" vagava há algum tempo pelas minhas ideias e me fascinava (isso de se esquecer de tudo, de ser levado a reinterpretar tudo o que há ao seu redor). 

Depois de ter me decido a escrever uma canção romântica, eu passei alguns dias matutando no que me caberia dizer, que não fora dito, ou que não fora dito de uma forma um tanto específica.

Vale dizer, como já disse noutro momento, que todas as minhas músicas foram estimuladas a partir de situações concretas. Qualquer canção minha foi feita "para" ou "por" alguém, por sensações que foram vivenciadas e me inspiraram. Em geral, não é o que ocorre com os compositores todos, visto que estão sempre obdecendo a contratos, a parcerias ou necessidades apresentadas por produtores. Eu, na solidão de tudo, só tinha mesmo meu coração para atender.

Assim, absorto em como desenvolver esta primeira canção romântica, vi de repente um certo rosto que me olhava. Uma moça que chegava a ser assustadora de tão bela. Ela me olhava com seus olhos escuros e desnecessariamente brilhantes. Um olhar de três segundos.

Aquilo me foi o suficiente. Escrevi "Amnésia" naquele dia e naquele instante sabia ter feito uma canção muito boa, verdadeiramente boa. Guardei a canção comigo, ela explodiu no meu hit parade mental e fiquei atônito, querendo mostrar a todo mundo - ora, quem é que não se entusiasma ao fazer uma canção?

Na mesma semana, nesse entusiasmo justificado, mostrei o manuscrito com a letra e acordes a uma moça, com quem andava a flertar, pois me parecia galanteio certo mostrar manuscrito de canção original a uma jovem. Outra moça, aliás, que aquelas dos olhos escuros só mesmo me olhou daquela vez, por intuição de inspirar um poeta quando este estivesse de necessidade. A outra, que nem olhos tão escuros tinha, pegou a minha folha de papel e disse que queria levar consigo, para copiar e despareceu no turbilhão de alunos, que a aula começaria.

Ah, me senti um Lord Byron, um Olavo Bilac. Mas foi tudo ilusão. A moça me confessou, horas depois, que havia perdido aquele manuscrito, que sumira, desaparecera. Ora, eu nem havia feito cópias e um bloqueio me veio. Fui tocado por uma amnésia! Esqueci de tudo o que escrevera. Esta moça aliás, por outros motivos, evidentemente, se mudou de escola no mesmo mês. Só me deixou o desaforo.

Somente um ano depois, no mesmo em dia que compus "Se tu fosses minha", eu me apliquei a reescrever a música perdida. O entusiasmo com a música se fora, eu estava compondo loucamente, e "Amnésia" se transformou num arquivo apenas. Ou mais que isso.

Se tornou um dos meus mais vorazes fantasmas. Todas as vezes, todas!, que estive a olhar para um belo rosto com olhos a brilhar logo me vinha aquela mesma sensação descrita na música, era como se vozes quase inaudíveis me cantassem "quero esta imagem para sempre, doce e viva"... Era o fantasma de uma canção, um dos tantos, que a todo instante me suplicava, implorava por um corpo.

"Amnésia" foi talvez o fantasma mais barulhento e persistente que habitou minha cabeça, neste longos anos. Um fantasma, afinal, doce e vivo.

quarta-feira, novembro 10, 2021

O garoto


Em dezembro de 1990, eu ainda não sabia o que a vida me seria e o que eu seria para a vida. Claro, não sou profeta de si próprio. Nem imaginava que as canções que estava a compor naqueles tempos teriam que esperar 30 anos para serem publicadas. Na verdade, talvez o desconfiasse. Se há algo que presta - de fato - em minha cabeça, além da produção de preto cabelo, é a intuição.

A intuição é uma voz suave, quase inaudível, que nos diz, sem que reconheçamos uma voz ou sotaque, algo sem sílaba e verbo, algo que é apenas um vento de ideia, muitas vezes mais clara e lógica que todo o entendimento e as leis bem escritas. 

Eu não sabia. E, assim como sempre, só sabia que deveria seguir adiante, escrever, compor, como se fosse natural trilhar uma estrada descalço só por trilhar, pisando nas pedras do caminho, reclamando e tirando o suor dos olhos. Eu não sabia exatamente o que deveria esperar ao final da longa rua.

Ora, eu esperei por um "deus ex machina", esperei por um "lucky strike", esperei que um dia mão sabia me guiasse porta adentro. Mas aquela mesma intuição sempre lúcida e cruel parecia sempre me dizer: "não, não virá". E um dia, vindo de tão longe - sinto eu - vindo de baixo de muitos escombros, após todos os terremotos que me derrubaram tanto, a mesma voz da intuição me disse, então: "vai, se vira".

segunda-feira, novembro 08, 2021

A pele e o pão de todos nós

Há exatos 30 anos eu compus "Pele e pão". Deste momento em minha vida, a manhã de 8 de novembro de 1991, no pátio do Ceneart, me vem logo a lembrança do meu espanto de escritor, ao perceber que me vinha de repente uma canção sobre algo tão diverso: era sobre o medo que eu falava, sobre a maneira estranha que enfrentamos a vida e as suas guerras. Não era mais uma canção de amor, não era mais uma canção política: me vinha uma metáfora poderosa. Para mim, meus queridos e imaginários leitores, um clássico para marcar aquele ano de 1991.


 


Nas ruas, em noites de carnaval, nossa alegria é tanta,
que nos sentimos bebês (no berço) envoltos de tudo.
Nossa vida é tanta que trocamos o pão pela pele
e esquecemos de matar a fome
e depois
ficamos doentes, ficamos doentes, ficamos doentes,
arrependidos e a procura de pão!

Nos palcos, nos campos, nas camas, nosso medo é tanto
que nos sentimos crianças, em volta de um erro.

Nossa vida é tanta que damos o pão pela perfeição
mas esquecemos de matar a fome.
Então o corpo adoece, então a vida adoece,
então o peito…e vem a vertigem e o furacão!

Em longas noites solitárias, nossa tristeza é tanta
que parecemos apaixonados em volta da incerteza.

Nossa vida é tanta que trocamos o pão pelas lágrimas
e esquecemos de matar a fome
e só nos resta pedir todo dia o pão que o diabo amassou 

pra entender o mundo
pra entender o mundo
pra entender o mundo...