quinta-feira, dezembro 09, 2021

30 anos esta noite

"Trinta anos esta noite", filme maravilhoso de Louis Malle que devo ter visto por volta de 1996, num cineclube que havia no Ibirapuera (salvo profundo engano da memória). Posso ter visto na lendária Cinemateca, na Vila Clementino. Posso até ter visto num VHS alugado por aí. Mas a memória construída e que me parece nítida e exata é a de ter visto mesmo numa amostra onde também vi "Acossado" e "Os Primos", três filmes franceses que estão no meu top 20 de "filmes de toda a vida". 

O filme de Loius Malle, de 1963, sobre um sujeito suicída, é uma obra-prima desagradável e nos oferece um final que é, pra dizer o mínimo, triste. Eu ainda me lembro de ter ficado deprimido com aquilo tudo e o filme imediatamente se tornou um dos meus preferidos, pelo efeito tão forte que me causou.

Originalmente, o filme se chama "Le feu follet", que numa tradução tosca seria "a faísca", "o foguinho". E já dutante o filme eu me perguntava o motivo de se chamar "Trinta anos esta noite". Sim, o título brasileiro é impactante mas evoca uma experiência que não há no filme. Embora não tenha atrapalhado minha experiência, me peguei avaliando a coisa durante a exibição. Havia algo de inadequado no título, é certo. E tanto quanto o filme, o título me marcou.

Há alguns dias, "Oco", uma canção minha que no meu universo particular é um clássico aplaudido, completou exatos 30 anos. Feita no início de dezembro de 1991, numa tentativa de criar uma bossa e que os meus trejeitos de cantor levam para outro canto, é o meu hino para o sujeito que vive eternamente batendo a cara contra a atmosfera (como digo numa outra canção). 

Trinta anos é tempo demais, para qualquer análise. É uma vida toda, para um indivíduo ou para uma cidade. São quase onze mil noites ou, na exatidão da poesia, dez mil, novecentas e cinquenta e oito vezes que a lua subiu e desceu na gangorra. Poetas e lobos por tantas vezes sentiram aquele frio na barriga no deslizar do planeta. E eu, que sou poeta e lobo, já velho e de caninos desgastados, mas ainda um lobo que sente a noite chegando a cada vento na tarde, devo dizer o quanto me é difícil medir esse tempo todo, mensurar com a régua da vida.

Eu bem me lembro. A memória, reconstruída ou não, ainda me satisfaz. Faz tempo que compus "Oco". E somente ao cantar tão distante canção é que me sinto novamente naquele título brasileiro para o filme francês. A cada vez que pego o violão, meu cajado mágico, e me ponho a cantá-la, com a voz que me restou, cada uma das milhares de noites como que insistem em chegar, ressurgem em cada verso, em cada palavra da canção. Trinta anos nestes versos. O tempo me esmaga. Quase engasgo no meu uivo.

domingo, novembro 21, 2021

O fogo que ferve a sopa

Flamengo é o nome do excesso de vermelho, da flama  e antes que alguém me corrija, citando o neerlandês vlamingen, vi num dicionário que vlam também é chama. No fundo, tudo se ajeita. O fogo é a razão deste clube (e já disse mil vez que o Brasil em brasa se abraça às flamas de seu principal clube e que a bandeira da pátria deveria ter ao menos uma estrelinha vermelha  e que o país não se tornará grande de fato enquanto não ajustar esse detalhe semântico em seus símbolos).

O Palmeiras é a homenagem às árvores da família Arecaceae, plantas com flor monocotiledóneas da ordem Arecales, com cerca de 2600 espécies, entre as quais plantas muito conhecidas, como o coqueiro e a tamareira. Sim, palmeiras são importantes. Quem não tomou buriti e comeu açaí geladinho, não fritou o frango no azeite de dendê, não comeu o palmito na salada ou não se deliciou com um incrível coco branquinho e crocante? Palmeiras são importantes para a economia do país. E merecem mesmo todas as homenagens. 

Mas o fogo não é uma das inúmeras plantas que a humanidade em sua história resolveu comer pra ver se era gostosa - o fogo é um fenômeno elementar em todo o universo. E graças àquele Prometeu, amigão do povo, que nos forneceu este conhecimento fundamental para a humanidade (e depois ficou uns 30 mil anos se lascando na picada dos abutres), é que os humanos puderam evoluir, construir cidades e inclusive ferver o palmito, as batatas e todo o resto, pra sopa de todas as noites.

E esta semana, na final da Copa Libertadores, teremos um combate estético e histórico. Mais do que um embate futebolístico, uma mera final de copa, teremos um embate entre universos tão diversos. Sei bem disso, caro leitor. Vi com os meus olhos.

Vivo aqui, em São Paulo, no canto do mundo onde mais palmeirenses se reproduzem. Meu pai mesmo é palmeirense. Minha esposa o era, quando a conheci. Seria o meu caminho natural, não fosse a beleza estonteante e hipnótica do Flamengo e sua torcida. Tornei-me Mengo ao completar seis anos e, desde então, por quatro décadas, tenho vivido entre inimigos: ouço suas palavras, vejo nítida a inveja em suas palavras, em todas as sílabas, o rancor escorrendo na baba mole. Sinto perplexo o quanto lhes dói perder do Mengo e o quanto se excitam na vitória, com doentia fúria.

Toda essa rivalidade entre Palmeiras e Corinthians é meio que a zanga que irmão tem de irmão. É a briga entre vizinhos, gente próxima que vive a brigar mas se ajeita quando é noite de natal e se encontra na missa de domingo. É aquela raiva de quem se vê demais, se enjoa, gente que discute por causa da marmita, por causa do banco do ônibus, por causa de namorada.

Mas o ressentimento palmeirense em relação ao Flamengo é de outra ordem. É a raiva do xenófobo, aquela aversão sem fronteira e sem alianças, é a raiva que é de inveja e é de juntar cada ponta de suas frustrações numa única seta de lança. Assim, sei bem o quanto a eventual derrota os ferirá, para sempre talvez. Viverão eternamente sem descanso com o olhar bestial daqueles que apenas desejam a vingança.

Quem nasceu para a salada, jamais estará no fogo que constrói e destrói toda a vida. Nesta semana, o Flamengo precisa queimar cada planta que houver, sabendo que na mesma proporção que verá a alegria de sua gente, em maior proporção sentirá o ódio dos derrotados, aquela cólera de consumir e deixar ainda mais feio.Ainda mais.

O astronauta


terça-feira, novembro 16, 2021

A canção espiral que vai ao infinito

 "Sono semplicemente un pagliaccio che perde tutta la sua grazia quando pensa alla disgrazia di perdere sua moglie."

"Trapezista" talvez seja minha mais bela canção. Talvez. Isso depende de quem ouve, como ouve e dos vínculos emocionais que encontrar com a obra. E depende também se é frio ou chuva, setembro ou feriado. Eu, daqui do meu canto, tenho vínculo emocional com todas as canções que fiz, naturalmente. Todas as minhas músicas me são misses de um desfile em que a menos bela ainda é uma deusa de pele macia. Mas vez outra me bate um "talvez quem sabe" a me dizer da importância de "Trapezista".

É a mais difícil de cantar, isso é certo. Ou me atinje em alguma fraqueza pessoal específica - apenas saberei quando ouvir outros cantores a saborearem os três versos que se desenrolam, no vai e vem da melodia. Tem uma melodia difícil, uma mudança de tom no "Sou trapezista" que complica sua execução. As pausas para a respiração precisam ser exatas.

Ah, minhas melodias, todas elas um pouquinho complexas. E pra música atual complexidade não é coisa que vai bem. Talvez há cinquenta anos, uma dose de complexidade fosse vista como coisa de bom artista, que vai além no seu processo de criação.

Por um tempo, simplicidade em demasia era até uma grande sina de fraqueza. Agora, em tempos de Tik Tok e canções de quinze segundos que se repetem tanto, melodia complexa é a sina de fracasso.

Paciência. O mundo futuro talvez há de perceber o que é "Trapezista". Ou talvez os humanos do passado o percebam enquanto ainda tiverem ouvidos. E logo também os italianos: gravarei versão em italiano de Trapezista. "Sono un diavolo ispirato" me parece uma ideia verdadeiramente boa.

Ah minhas melodias. nelas eu me vejo a delirar.

Aniversário de quem é infinito

Quando é meu aniversário comemoro o ano que vivi, a sobrevivência. Sobreviver a estes tempos, neste canto do mundo, é motivo pra comemorar reunido a todos, com bolo e champanha. É pra chorar até, abraçar a cada amigo, o cachorro no quintal, o chefe no trabalho, o motorista do ônibus. É pra fazer promessa e agradecer a cada deus já imaginado neste mundo de tantas crenças.

Quando é meu aniversário a família se reúne. Minha mãe rememora as dores do parto, minha esposa sente a viuvez ainda longe, minha filha me aperta as mãos, celebramos todos que eu permaneci por aqui, mesmo tendo trilhado meus quilômetros por entre um campo minado cercado de abismos. Ufa! Na roleta russa das coisas que destroem o frágil corpo, sobrevivi.

Ê!!! É a festa que se faz. Me dou presente até, compro na prestação, mas me dou essa chance.

Mas eu mesmo me agarro ao tempo que se esvai. Sobrevivi, emoções eu vivi, mas na numeração sobre o bolo, sempre me sobra um vento a dizer: um a menos. Eu fiz certa vez oito anos. Fiz certa vez vinte e nove. Fiz este ano quarenta e sete. A cada ciclo que o planeta faz no seu bambolê, eu me escorro na ampulheta, vou olhando a areia descendo, os grãos que vazam uns sobre os outros.

É... O cachorro no quintal me cheira, o chefe no trabalho me bate nos ombros, o motorista do ônibus cerra os olhos, cada um sabendo da finitude, sem até pensar nela. O bolo doce até, tão doce, perde um pouco do seu gosto. A champanha gelada perde suas bolhas, evaporam. A cada palma do "Parabéns a você" a vida - esta tão incrível experiência - se mostra apenas um bailado naquele mesmo campo minado... uma dança de horrores e delícias.

Mas quando é aniversário do Mengão, este eterno, temos todos outros pensamentos. O Mengo, na sua meninice, não correu risco de ser atropelado, não correu risco de engasgar na feijoada, não correu risco de levar bala perdida nos descaminhos. Seu aniversário não carrega deste drama. Assim como o Sol, o planeta rodou e ele apenas seguiu com a sua mania de brilhar jogando flama por todo os cantos.

Mais fácil acabar o Brasil (país que parece escolher a eutanásia a cada ano), que acabar o Flamengo. O Flamengo persistiria, até sem cidade, estado ou país, a disputar os campeonatos que os homens do futuro vierem a inventar para que o Flamengo se alimente.

E nem há ampulheta, nem tic tac a espreitar a finitude desse imenso monstro. Flamengo faz 126 anos e fará 252, seiscentos, fará mil, e parece dar de ombros a tudo isso. E não fará cinco mil anos apenas se não houver planeta onde se jogar futebol, o que não deixa de ser uma hipótese, tendo-se em vista que os cometas ainda estão por aí.

E esta é a bela celebração no aniversário daquilo que nunca finda. É a celebração de quem não está descendo a ladeira da vida. E é a celebração de quem está fora da linha mesquinha do espaço/tempo: somos só nós que comemoramos, afinal, nossa sorte. Celebramos ter passado mais uma temporada ao seu lado, aos seus pés. Pois se o Mengo persiste, nós é que sumimos do mapa. 

Se não estive aqui pra ver a glória de Zizinho, a simpatia de Leônidas e a categoria de Dida, não estarei também pra ver a quinquagésima taça libertadores, o centésimo campeonato brasileiro, o milésimo cariocão. Nisso também me pego a pensar. Apenas nisso: sobreviver o quanto puder, para a cada ano celebrar neste 15 de novembro e afinal dizer: "estou aqui, Flamengo. Ainda estou por aqui!".

Crônica publicada em 16 de novembro, na página mundorubronegro.com

domingo, novembro 14, 2021

Uma canção que virou tabu


"Enterro a 2" foi feita em 13 de novembro de 1991 - e ontem, portanto, 13 de novembro de 2021, comemorou também 30 anos. Ainda me lembro quando dias depois a mostrei a um grupo de colegas que estavam comigo diante da lanchonete da escola. Como minha memória tem lá suas estranhezas, me lembro disso. Daqueles que estavam lá, ao meu redor, não creio que alguém se lembre. 

Poderia citar ao menos dois dos colegas que estavam lá - mas de repente me pego perguntando se esta memória não tenha sido modificada ou distorcida na mistura de lembranças que temos, mudando personagens e ambientes na tentativa que o cérebro faz pra completar dados faltantes.

Pra mim, "Enterro a 2" era um poema tão romântico, uma canção de verdadeira paixão. Ora, estava eu nesta, entregue a uma paixão que só me deu azia e boas canções, estava assim a flutuar pelos sentimentos e queria, da minha maneira escorpiana, dizer daquela minha vontade de ficar perto, deitar junto, "morrer" junto.

Era tão óbvio aos meus ouvidos e olhos de escritor e compositor. Eu estava tão feliz por aquilo tudo, afinal "Enterro a 2" me era aparentemente tão original, uma declaração que extrapolava!

Mas a  reação de uma das minhas colegas de escola foi um "ai que horror!" e eu gargalhei. Outro, um garoto mais grosseiro, bastante aliás, me perguntou se eu estava "sentado na privada" quando escrevi aquilo. Sim, teve quem me dissesse coisa mais positiva, mas fiquei com a certeza de que aqueles adolescentes não estavam preparados para canção de imagens tão fúnebres.

A canção viveu todo este tempo nos meus arquivos. Eventualmente, eu a tocava, como se voltasse a colocar os dedos num tabu proibido e que vozes ao meu redor voltariam a gritar "ai que horror!", me olhando como se eu fosse uma bruxa a ser queimada em fogueira. Agora, 30 anos depois, não sei mais se me viriam com isso. Já ouvimos tanto disso, tanto a arte já se virou além dos seus limites, tantas imagens da vida real nos causaram asco, já passamos por pandemia, sobrevivemos e enterramos tantos amigos e tantos sentimentos. 

Eu não sei como "Enterro a 2" está sendo sentida pelos ouvidos e olhos alheios. A mim, ainda me é um grito de amor, pueril até, que usa de uma metáfora nada apaixonante justamente para colocar a paixão além do seu limite corpóreo, além da luz que cerca a própria vida.

Ah! meu cadáver preferido
Imagine a poesia
De sermos enterrados juntos
Na mesma cova
Nossos corpos colados
Eternamente
Apodrecendo
Ao mesmo tempo

Ah! nossos ossos se unindo
Revelando calmamente
Que os mesmos vermes
Que lhe comeriam
Se fartariam também
Da minha carne
Num banquete sexy
Com o nosso gosto

Ah! nosso cheiro putrefato
Nossa nudez crua e lenta
Fazendo inveja aos outros mortos
Que solitários
Morrem amargos
Sem o romantismo
Da podridão, do escuro e da morte



sexta-feira, novembro 12, 2021

Trovador, poeta ou o que seja

Insisto: não sou sou um músico, mas um poeta que faz música. Músico é uma espécie diferente de humano, ouvidos e raciocínio além de uma matemática hormonal. Músicos vivem embebidos de uma lógica que eu apenas vejo por frestas de uma parede tomada de rachaduras. 

Sou um sujeito de pensamento caótico, lúdico ou cínico, um trovador de vozes que ouço nos silêncios. Isso. Meus espelhos sempre me mostraram o que sou. 

Muito menos ainda sou instrumentista.
Daqueles que tocam Pixinguinha enquanto mascam chicletes.

Não. Minhas mãos me desobedecem, meus dedos me traem, e, pra mim, cada lá com sétima e sexta é um sofrimento árduo de conexão entre cérebro e tendão.

Ora, cantar eu canto. Canto "Put your head on my shoulders" ou "Sixteen Candles" e canto com alguma desenvoltura, a mascar chicletes. 

Mas pardais também cantam em suas gaiolas.
Isso não faz de mim um músico de ouvido perfeito e metrônomo encalacrado nas entranhas.

Só faz de mim um poeta de garganta umedecida, um pardal que canta em sua gaiola, por precisão de sua natureza.



quinta-feira, novembro 11, 2021

A amnésia e o fantasma nunca esquecido

"Não quero nunca me esquecer do seu rosto, 

quero esta imagem para sempre, 

doce e viva na minha memória"


Depois de ter feito minhas primeiras canções, me dei o desafio de fazer uma música "romântica". Ora, eu havia aprendido violão com as canções de Roberto! Eu ainda era um moço virgem de quinze anos e de alguma "inocência", mas já tivera inúmeras paixóes platônicas não correspondidas, pequenas obsessões imaturas, e já entendia bem desta coisa de tristeza e rejeição.

Mas uma canção romântica não é sobre isso, o lado triste e desesperado do amor: é sobretudo sobre a celebração dos sentimentos, desta experimentação que nos faz sentir vivos e miseráveis. 

Um tempo antes, em meados de 1989, eu havia concebido um romance de suspense chamado "Amnésia" a qual não escrevi ainda, décadas depois, embora o projeto ainda esteja "em aberto". O termo "amnésia" vagava há algum tempo pelas minhas ideias e me fascinava (isso de se esquecer de tudo, de ser levado a reinterpretar tudo o que há ao seu redor). 

Depois de ter me decido a escrever uma canção romântica, eu passei alguns dias matutando no que me caberia dizer, que não fora dito, ou que não fora dito de uma forma um tanto específica.

Vale dizer, como já disse noutro momento, que todas as minhas músicas foram estimuladas a partir de situações concretas. Qualquer canção minha foi feita "para" ou "por" alguém, por sensações que foram vivenciadas e me inspiraram. Em geral, não é o que ocorre com os compositores todos, visto que estão sempre obdecendo a contratos, a parcerias ou necessidades apresentadas por produtores. Eu, na solidão de tudo, só tinha mesmo meu coração para atender.

Assim, absorto em como desenvolver esta primeira canção romântica, vi de repente um certo rosto que me olhava. Uma moça que chegava a ser assustadora de tão bela. Ela me olhava com seus olhos escuros e desnecessariamente brilhantes. Um olhar de três segundos.

Aquilo me foi o suficiente. Escrevi "Amnésia" naquele dia e naquele instante sabia ter feito uma canção muito boa, verdadeiramente boa. Guardei a canção comigo, ela explodiu no meu hit parade mental e fiquei atônito, querendo mostrar a todo mundo - ora, quem é que não se entusiasma ao fazer uma canção?

Na mesma semana, nesse entusiasmo justificado, mostrei o manuscrito com a letra e acordes a uma moça, com quem andava a flertar, pois me parecia galanteio certo mostrar manuscrito de canção original a uma jovem. Outra moça, aliás, que aquelas dos olhos escuros só mesmo me olhou daquela vez, por intuição de inspirar um poeta quando este estivesse de necessidade. A outra, que nem olhos tão escuros tinha, pegou a minha folha de papel e disse que queria levar consigo, para copiar e despareceu no turbilhão de alunos, que a aula começaria.

Ah, me senti um Lord Byron, um Olavo Bilac. Mas foi tudo ilusão. A moça me confessou, horas depois, que havia perdido aquele manuscrito, que sumira, desaparecera. Ora, eu nem havia feito cópias e um bloqueio me veio. Fui tocado por uma amnésia! Esqueci de tudo o que escrevera. Esta moça aliás, por outros motivos, evidentemente, se mudou de escola no mesmo mês. Só me deixou o desaforo.

Somente um ano depois, no mesmo em dia que compus "Se tu fosses minha", eu me apliquei a reescrever a música perdida. O entusiasmo com a música se fora, eu estava compondo loucamente, e "Amnésia" se transformou num arquivo apenas. Ou mais que isso.

Se tornou um dos meus mais vorazes fantasmas. Todas as vezes, todas!, que estive a olhar para um belo rosto com olhos a brilhar logo me vinha aquela mesma sensação descrita na música, era como se vozes quase inaudíveis me cantassem "quero esta imagem para sempre, doce e viva"... Era o fantasma de uma canção, um dos tantos, que a todo instante me suplicava, implorava por um corpo.

"Amnésia" foi talvez o fantasma mais barulhento e persistente que habitou minha cabeça, neste longos anos. Um fantasma, afinal, doce e vivo.

quarta-feira, novembro 10, 2021

O garoto


Em dezembro de 1990, eu ainda não sabia o que a vida me seria e o que eu seria para a vida. Claro, não sou profeta de si próprio. Nem imaginava que as canções que estava a compor naqueles tempos teriam que esperar 30 anos para serem publicadas. Na verdade, talvez o desconfiasse. Se há algo que presta - de fato - em minha cabeça, além da produção de preto cabelo, é a intuição.

A intuição é uma voz suave, quase inaudível, que nos diz, sem que reconheçamos uma voz ou sotaque, algo sem sílaba e verbo, algo que é apenas um vento de ideia, muitas vezes mais clara e lógica que todo o entendimento e as leis bem escritas. 

Eu não sabia. E, assim como sempre, só sabia que deveria seguir adiante, escrever, compor, como se fosse natural trilhar uma estrada descalço só por trilhar, pisando nas pedras do caminho, reclamando e tirando o suor dos olhos. Eu não sabia exatamente o que deveria esperar ao final da longa rua.

Ora, eu esperei por um "deus ex machina", esperei por um "lucky strike", esperei que um dia mão sabia me guiasse porta adentro. Mas aquela mesma intuição sempre lúcida e cruel parecia sempre me dizer: "não, não virá". E um dia, vindo de tão longe - sinto eu - vindo de baixo de muitos escombros, após todos os terremotos que me derrubaram tanto, a mesma voz da intuição me disse, então: "vai, se vira".

segunda-feira, novembro 08, 2021

A pele e o pão de todos nós

Há exatos 30 anos eu compus "Pele e pão". Deste momento em minha vida, a manhã de 8 de novembro de 1991, no pátio do Ceneart, me vem logo a lembrança do meu espanto de escritor, ao perceber que me vinha de repente uma canção sobre algo tão diverso: era sobre o medo que eu falava, sobre a maneira estranha que enfrentamos a vida e as suas guerras. Não era mais uma canção de amor, não era mais uma canção política: me vinha uma metáfora poderosa. Para mim, meus queridos e imaginários leitores, um clássico para marcar aquele ano de 1991.


 


Nas ruas, em noites de carnaval, nossa alegria é tanta,
que nos sentimos bebês (no berço) envoltos de tudo.
Nossa vida é tanta que trocamos o pão pela pele
e esquecemos de matar a fome
e depois
ficamos doentes, ficamos doentes, ficamos doentes,
arrependidos e a procura de pão!

Nos palcos, nos campos, nas camas, nosso medo é tanto
que nos sentimos crianças, em volta de um erro.

Nossa vida é tanta que damos o pão pela perfeição
mas esquecemos de matar a fome.
Então o corpo adoece, então a vida adoece,
então o peito…e vem a vertigem e o furacão!

Em longas noites solitárias, nossa tristeza é tanta
que parecemos apaixonados em volta da incerteza.

Nossa vida é tanta que trocamos o pão pelas lágrimas
e esquecemos de matar a fome
e só nos resta pedir todo dia o pão que o diabo amassou 

pra entender o mundo
pra entender o mundo
pra entender o mundo...


sexta-feira, novembro 05, 2021

A solidão é a sorte de alguns

    "A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais" é aquela frase de Arthur Schopenhauer. Tenho refletido sobre isso. A vida é nada: horas enormes em longos dias em anos curtos e décadas breves. E vez ou outra, nesta longa aventura, me senti e me sinto só, pouco além de mim, meio no desassossego da quietude. Em silêncio de tudo.
    Foi sempre o que desejei, afinal. Viver evitando a busina da desordem alheia. "Inferno são os outros" diz a velha máxima de Sartre. Mas eu digo além: barulho são os outros. Este é o "egoísmo do silêncio", diram alguns e eu não poderia fingir que não é certo. Sim, todo silêncio é antes de tudo um egoísmo calhorda.
    Pudera apenas que todos pudessem compreender que a mim este silêncio é açúcar, alimento para a compreensão da vida. Pudera apenas que compreendessem: já havia barulho demais dentro da minha cabeça. Já havia uma sinfonia perigosa a me estripar a paz.


segunda-feira, novembro 01, 2021

Irmandade, canção para os amigos

Palavras sobre "Irmandade",  canção de Planetas Vivos, de 1990, presente na coletânea Obras Completas: volume 1, que escrevi para o site gerrirodrian.com:


    "Vivíamos tempos difíceis, naquele ano de 1990. O país estava bagunçado, politicamente caótico. A AIDS atormentava as relações e matava nossos ídolos. Não sabíamos se era justo ter esperança.
    E, assim como atualmente, alguns dias eram de total desânimo.
    Eu era tão jovem mas já me sentia do lado de fora, já me sentia inimigo da ordem, já sabia bem quem eram os vilões. Sabíamos - eu e alguns dos meus amigos daqueles anos, sabíamos bem quem eram os manipuladores, os hipócritas.
    'Irmandade' foi feita certa noite, quando havia uma reunião entre estes amigos. Eles falavam, discutiam algum assunto daqueles costumeiros, envolvendo filosofia ou política ou arte. Eu estava lá, entre eles, mas num canto estava absorto, à parte, com o violão, inspirado por aquele momento.
    Então conversavam, acirradamente, tão envolvidos quanto eu. Sequer sabiam que eu estava a escrever. Eram uns quatro ou cinco rapazes tentando se posicionar no mundo, tentando fazer valer seus ideais.
    Compus uma canção que era um confronto, uma declaração de guerra e a autoafirmação de um posicionamento intelectual. Sentia bem que era inútil lutar - eles eram tantos! Eram desonestos, eram descaradamente desonestos! E o que tínhamos nós além de asas medíocres?
    Passaram-se trinta anos. Alguns destes jovens hoje são "chatos e xucros", outros ainda sobrevivem idealistas, rebeldes nesta guerra em que só nos resta seguir adiante, dentro de cada palavra.
    Inexplicavelmente, também 'Irmandade' se manteve só em manuscrito e arquivo de memória. Uma canção que é tão atual, tão certeira - um hino até, que se manteve hibernando, enquanto eu me ocupava com a vida."


sexta-feira, outubro 29, 2021

Álbum - Obras Completas, Vol. 1

O silêncio me veio. Dez anos.

Em verdade, quase isso. Eu escrevi bastante por uns tempos. Crônicas. Espalhadas pelo mundo, pela rede. 

Mas não deixa de ser silêncio, quando só se fala pouco, sussurrando.

E não é que o mundo é redondo e feito aquela roda nos bota de volta nos mesmo horizontes?

Eu mesmo me espanto. Pois voltei. O silêncio acabou, afinal.

E volto com o lançamento de Obras Completas, Vol. 1, que traz meus três primeiros álbuns: Planetas Vivos (1990), O trapezista (1991) e O astronauta (1991/1992). Ou, noutras palavras, minhas 33 primeiras músicas, da época que eu poderia chamar de minha "Jovem Guarda". 

Agora posso afirmar que apenas tenho doze álbuns inéditos, os quais serão publicados nos próximos volumes. Em 2022, o segundo volume trará mais três álbuns. E assim a coisa vai, ano a ano.

Muito em breve, três livros serão publicados: o romance "Fenices: uma fantasia sobre a morte", a coleção de versos "Poesia de fim de século" e "Teatro completo: tomo I".

Segue consistente o projeto "Obras completas", em que publicarei tudo o que houver.

E assim o silêncio de fato se esvai, sem sussuro que pareça vento.